terça-feira, 30 de março de 2010

Alfacinhas

O Sebastião e a Sebastiôa eram um casal de ricaços, donos de um palacete à Junqueira. Ele fora padeiro no Brasil e ela camareira mas saiu-lhes a sorte grande e tornaram a Lisboa onde, pela tarde, vinham exibir o seu magnífico trem na Avenida. Talvez fosse a Mulata a penteá-la, que era cabeleireira da rainha D. Maria Pia e também gorda, caricata e muita dada a paixões, gastando com os conquistadores os fartos lucros. Quanto à Dama Vermelha vestia-se sempre dessa cor quando distribuía prospectos pelas ruas. Fora companheira de um antigo terrorista que em tempos deitou uma bomba de dinamite na Rua do Carmo e depois andou fugido por Marrocos. Menos sorte teve a Irmã Coleta, filha de oleiros, que foi apanhada no Convento das Trinas de Mocambo por ter envenenado uma educanda chamada Sara de Matos. Sete anos tinha o Rei da Madureza quando caiu de um terceiro andar e ficou meio tarado. Depois foi cauteleiro, engraxador, criado de barbeiro, toureiro na praça de Algés e acabou em sineiro da Igreja dos Mártires. Preso 39 vezes por embriaguez e ofensas à moral, um dia sairam-lhe 100.000 reis na lotaria mas gastou tudo em vinho e foram dar com ele morto num cubículo no Convento das Bernardas, com outro idiota a quem chamava irmão. Irmãos mesmo e quase cegos eram os Bichos de Seda que em tempos tocavam um flauta e outro piano num café da rua da Madalena mas agora vendiam sinas no Chiado. Filhos de uma velha capelista, cairam na miséria depois da morte da mãe, roubados por fregueses sem escrúpulos.


A Amélia Chinesa começou como criada da Ana Varina mas tão boa era ao serviço que acabou por tomar de trespasse à patroa as muitas casas de toleradas que tinha na Rua da Atalaia. Já a Antónia Moreno era espanhola, mundana de grande fama que acabou por montar casa suspeita de conterrâneas que importava, na Rua da Misericórdia, até comprou o prédio e faleceu em 1899, de febre tifóide. A Maria Inês praticava o mesmo ofício na baixa esfera, na sua casa perto do Chafariz do Rato havia negras e realizavam-se batuques. Quanto à Teresa do Pino, da Tv. do Poço da Cidade, conseguiu notoriedade pela forma esquisita como conquistava os seus admiradores, tendo sobre o leito um trapézio onde executava nua alguns trabalhos de ginástica. A Luisinha Cocotte era afinal um tipo rico de uma família da Lapa e Rainha das Rosas era o que chamavam ao Fernando. Sorte teve a Josefa Arranjada que foi bom alfaiate na Casa Africana e depois se fez cartomante e ganhou fortuna. E a República, fiquem a saber, era afinal uma meretriz que, em 1911, tomou parte num carro alegórico no cortejo cívico das festas do novo regime.


É um despautério passear pela cidade que alberga esta multidão de gente esgrouviada. Sabemos quem foram porque alguém deixou registado, em mais de mil folhinhas de um bloco, esta compilação de personagens lisboetas. O Grupo dos Amigos de Lisboa encontrou esta papelada nos seus arquivos e decidiu um dia publicar este “Dicionário das Alcunhas Alfacinhas”. Só nunca saberemos o nome do seu autor, para sempre anónimo.


Crónica de Catarina Portas, Público, 18 de Outubro 2008.
E o desafio para aproveitar os últimos dias de exposição sobre as histórias das personagens de Lisboa. Até amanhã no Museu da Cidade.

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