Os quiosqueiros já foram ver e recomendam a peça "Os Desastres do Amor", que a Cornucópia tem actualmente em cena. É de resto a última programada pela companhia, uma vez que os apoios para 2013 não estão garantidos - e logo, mais uma razão
para irmos ao teatro, como forma de apoio às artes. O que só se torna um gosto ainda maior diante de um elenco notável, uma encenação audaz e um texto inteligente - que também é um puzzle bem montado de excertos de textos de Pierre de Marivaux, permeado por uma fina camada de ironia, qual fio condutor.
A Verdade, a Felicidade, o Amor, a Virtude e o Escrúpulo encontram-se num jogo que também envolve deuses do Olimpo e comuns mortais. Como quem procura o equilíbrio num limbo entre o bailarico popular e o hotel de luxo, como quem diverte e quem questiona. E isto continua a ser um perigo.
Teatro da Cornucópia: Rua Tenente Raúl Cascais, 1-A em Lisboa. De terça a sábado às 21h00 e domingo às 16h00, até 25 de Novembro.
"O Teatro da Cornucópia regressa ao tons de comédia com ‘Os Desastres do Amor’, espectáculo que Luís Miguel Cintra concebeu a partir de vários textos de Marivaux (1688-1763) e que se oferece ao espectador como um delicioso mergulho no mundo dos deuses, da luta entre o Bem e o Mal, do confronto entre as virtudes e os defeitos humanos. Mas este é também um espectáculo em que se repensa o amor e a fo
rma como a moral vigente condiciona a felicidade individual." Ana Maria Ribeiro, in Correio da Manhã
"Costumamos ir à Cornucópia para ver espectáculos maximizados para a metafísica e podemos convencer-nos que, desta vez, temos uma festa de possibilidades em torno do tema doce do amor. Só que, bem vistas as coisas, sair dali a pensar que Cintra cumpre a sua palavra de nos falar de outra coisa que não seja a crise, será a crise da própria compreensão. Tudo aquilo que nos é dado a ver é a paisagem da crise antes da crise, sob a crise, fundamento da crise, a crise da nossa ligação ao mundo. A crise da autenticidade, que levará sempre à crise da cidade."
Porfírio Silva, in Machina Speculatrix
"O que quer que seja que aí venha, para Luís Miguel Cintra, como para Marivaux no século XVII, importa ler, revelar, acreditar de novo num "delicado prazer de descobrir os meandros da alma humana, um tal prazer e tudo entender, que dá a volta, e volta a trazer ao teatro a alegria". (...)
Teatro de inconformado, portanto, mais do que inconformista, este Os Desastres do Amor. Peça feita de escolhos, de coisas que ficam, das representações pagãs de Pasolini, dos quadros com corpos assustados de Fragonard, com músicas que cruzam o sentimentalismo de Nino Rota com a anestesia da música brasileira. Peça feita com amigos porque "há ainda espaços de trabalho em que isso existe e muitos mais existiriam se a burocracia, que não sabe o que é a felicidade nem o prazer, não os fosse matando até morrer ela de vaidade, agarrada ao que não levará consigo". Peça feita para amigos, que é o que se chama a quem quiser recusar uma relação com o teatro igual à da televisão, "normalizada, banal, europeizada".
(...) Mas o que assalta Cintra, nesta peça que é um ponto da situação da "consequência do esvaziamento" que hoje vivemos, é o mesmo que levou Marivaux a estes textos tão perturbadores: "Nós, a quem o universo agitado desde há muito devia ter transmitido uma experiência tão vasta e tão profunda, que uso fizemos dessa prodigiosa colecção de ideias que, no seu entender, partilhámos por herança?"E, por isso, quando nos fala de Os Desastres do Amor, Cintra começa sempre as suas frases com intenções: "eu desejo", "eu procurei", "hoje, acho". Repare-se na última palavra usada por Cintra na peça: "Fuck." Como Kubrick, em De Olhos bem Fechados, coincidência dir-nos-á o encenador, como se a palavra, uma "marivaudage", ficasse entre grito de resistência e desabafo sentido. "Acredito que o futuro não será só barbárie. Mas a Cultura ajudará a que nós disso tenhamos consciência", escreve o encenador. Se isto não é um manifesto de uma alma nova, não andará longe."
Tiago Bartolomeu Costa in Público