terça-feira, 21 de abril de 2015

A apresentação de Fernando Alves

"Há muitos anos na Quinta da Sra. de Mércules em Castelo Branco, retive a intervenção mais luminosa de um Encontro sobre Plantas Ornamentais. Foi a intervenção da Prof. Isabel Mourão. Lembro-me de uma conversa ao jantar, num canto da mesa onde estava também Fernanda Delgado, a organizadora do Encontro. Eu escutava como se me estivesse a ser revelado o jardim suspenso da Babilónia.

Algumas vezes pensei que gostaria de contar com a sua participação num ou outro programa em que me aventurei. Mas há temas para os quais a distância é um sobressalto logístico. O convite que a professora Isabel Mourão me dirigiu, que muito me honra e muito agradeço, foi surpreendente e inesperado: nunca semeei alecrim nem plantei couve portuguesa. Nunca tive um quintal (nesse caso ter-me-ia atrevido a iniciar uma horta que parecesse um jardim, um jardim-horta mais do que um jardim-horto; um jardim de hortaliças, ervas aromáticas e flores comestíveis). Não tenho um grão de autoridade para falar dos temas de que este livro se ocupa, nem a sabedoria generalista do Borda d'Água.
O que é que posso dizer deste livro? Que ele vem dar notícia e que o faz como deve ser. Define as perguntas centrais do exercício jornalístico, aquelas a que uma notícia obedece: O quê? Quando? Onde? Como? Porquê? Mas sendo um livro de especialistas começa pelo fim, por aquilo que, muitas vezes, para os jornalistas, está no fim do lead (quando está). Este livro começa pelo “porquê”. Porquê uma horta em casa? Na verdade, ainda precisamos dessa explicação. Ainda precisamos que nos seja mostrado, que nos seja demonstrado, que esta é a resposta a uma necessidade, que esta pode ser uma maneira inteligente de nos aproximarmos e de aproximarmos as nossas crianças da natureza, de contrariarmos aquilo a que, como este livro lembra, os especialistas chamam o distúrbio do défice de natureza. Este livro sacode-nos da astenia e lembra-nos que há espaço para a natureza dentro de casa, mesmo quando se vive num apartamento: há espaço na sala, na varanda, na janela, no terraço. E que, ao trazer a natureza para dentro de casa, ao trazer as plantas da horta, as aromáticas ou as flores comestíveis, ajudamos a defender a segurança alimentar e fazemos alguma coisa, pouco que seja, pela biodiversidade. E chama-nos para uma experiência que nos ensina e ensina os nossos filhos e netos a dar valor aos alimentos.
O livro começa por abrir uma janela para o quadro geral, faz o ponto de situação, coloca o problema, sugere modos de agir. Torna claro e apetecível um caminho que nos é vantajoso; aquilo que era, apenas, uma vaga percepção ou um slogan repetido torna-se tão evidente que nos coloca a necessidade de um compromisso. Nesse sentido, este livro é uma ferramenta para a acção. É muito feliz o resultado deste encontro entre uma engenheira agrónoma e um arquitecto paisagista: Antes de nos trazerem para a casa plantas, eles mostram-nos a planta da casa e a sua progressiva, versátil e imaginativa adaptação às plantas. Este livro diz-nos quais são as plantas mais adequadas e como as devemos acolher de acordo com as condições de espaço e de luz. Ajuda-nos a aconchegar harmoniosamente a horta e a casa. O grande poeta brasileiro Manoel de Barros que morreu recentemente, disse num poema intitulado “O Apanhador de Desperdícios” “O meu quintal é maior que o mundo” Este livro não ousa dizer que a horta em casa é maior do que o quintal ou a horta urbana. Mas prova que a horta em casa é mais do que o quintal trazido de elevador. Porque opera transformações na ideia de casa.
Diz-nos pois o livro o quê e como. E é tanto, abre tantas possibilidades esse “o quê”, e são tantos os modos de o arrumar nos espaços por vezes desaproveitados da casa, que a nossa casa (contando só varandas e janelas e marquises e terraço) se torna parecida com o quintal do poema. Pode ser uma casa que dá abóboras e favas e espinafre e ervilha-de-quebrar e alecrim, orégão, rosmaninho e salsa (a salsa que se pode semear não apenas ao reguinho, como lembra a canção do Vitorino, mas também na varanda de nossa casa e assim já não precisamos de a ir pedir à vizinha, um raminho que seja, antes pelo contrário). Aprendi muitas coisas com este livro: aprendi que entre as flores comestíveis está uma chamada “alegria do lar”. É um estranho nome, parece muito apropriado para uma planta que se rega, se cuida, se tempera e se come em casa. Este livro alarga o mapa de sabores-aromas, o leque de pétalas para as papilas, (que, no meu caso, era um leque curto desde uma experiência, com um pé atrás, nem sequer repetida, num restaurante da Fonte da Benémola, perto de Querença, no Algarve, onde degustei talvez uma rosa, por certo um amor-perfeito). Aqui não vislumbro papoilas gustativas, mas verbenas, petúnias e capuchinhas. Este livro é bonito como um canteiro bem cuidado.
Lembro-me de nos tempos do liceu transportar folhas entre folhas: folhas de plantas espalmadas entre folhas de um livro; era um trabalho escolar; apanhávamos as folhas que ali permaneciam enquanto duravam experiências da aula de botânica, elas estiolavam lentamente (bainha e pecíolo perdiam o viço e espalhava-se por toda a folha uma tristeza lanceolada, uma agonia fendida….). Eu olhava maravilhado esperando que as palavras aprendessem a captar a luz e os textos concretizassem uma fotossíntese, vá lá uma fotossintaxe, mas nunca dei por que acontecesse. Acontece neste livro: o belo canteiro que este livro é permanece viçoso, estas são flores que não perdem a cor, aqui espalhadas para nosso deleite, para o apetite de todos os sentidos.
Não devemos tomar este livro todo à letra de uma vez. Este livro tem muito que plantar e colher. Não poderíamos transpô-lo na totalidade para a horta de nossa casa. Mesmo tendo terraço. Vamos fazendo e gozando, pensando que a palavra terraço já estava, afinal, pronta para que nela semeássemos. Terraço é uma palavra que acolhe a palavra terra e a palavra espaço. Mas este livro diz-nos que o terraço não é só o chão para contemplar o espaço, os astros, as aves e as naves que nele passam. É um espaço que se alarga no chão e nos canteiros suspensos. Vamos semeando e plantando, conforme a necessidade, o gosto e o calendário: o livro ensina. E até nos diz o que não devemos plantar.
Este livro ensinou-me que os brócolos e a couve-flor são pré-inflorescências e eu traduzi, porventura erradamente: flores que não abriram. Este livro ensinou-me o que são cultivares. Ensinou-me como fazer tabuleiros utilizando embalagens de iogurte ou rolos internos de papel higiénico. Não entro em conceitos mais complexos como o da propagação vegetativa mas aposto que ficareis tão presos como eu à explicação do processo de enraizamento de estacas de caule de orégão ou alfazema (e cada novo processo é sempre acompanhado de ilustrações e de quadros esclarecedores, num grafismo muito apelativo). O livro ensina-nos tudo o que é essencial sobre compostagem e fertilização. Diz-nos como se combate uma praga de lesmas. E enumera as plantas aromáticas que repelem os insectos ou os vermes microscópicos muito prejudiciais. O coentro, a camomila e o cravo-da-india têm super-poderes, ao que percebi. Chegou a altura de semear a abóbora nos canteiros, a 2 cm de profundidade.
E já podemos plantar a acelga que semeámos em Fevereiro. E mesmo sendo uma beta, uma beta vulgaris, a acelga é um dos alimentos mais saudáveis do planeta. Li isso noutro lugar, há tempos. Fui procurar neste livro. Lá está a acelga: podemos semeá-la na varanda ou no terraço, idealmente em fevereiro, depois de demolhadas as sementes em água fria durante um ou dois dias. Semeamos a 2 cm de profundidade e plantamos em abril. Podemos comê-la em salada ou em sopa, como fazemos com os espinafres. Cortando com cuidado as folhas, baby. Esta pausa foi batoteira. Não há vírgula.
“Folhas baby” é a designação das folhas obtidas em colheita precoce. A professora Isabel Mourão explicar-vos-á isso com minúcia e rigor, se for do vosso interesse. Eu aspiro o perfume deste livro que olho, também, com a atenção de leitor de almanaques e bordas de água e não posso deixar de anotar uma curiosidade: a editora que plantou este livro fica na rua Prof Jorge da Silva Horta. Ora este professor Horta foi uma grande autoridade em anatomia patológica. Nasceu em Lisboa onde chegou a dirigir a faculdade de medicina mas no início dos anos 40 foi ele que montou o serviço de análises de águas na ilha do Faial. A ilha do Faial cuja capital é precisamente a cidade da Horta.”  

Fernando Alves

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