quinta-feira, 8 de julho de 2010
Quer V. Ex.ª um copo de Orchata?
Bebidas que já não se viam há muito tempo - orchata, mas também capilé ou leite perfumado - voltam às ruas de Lisboa em três quiosques antigos restaurados. "Gosto de pegar numa coisa semiesquecida e perceber como se pode adaptar aos tempos de hoje", explica Catarina Portas, responsável, com João Regal, pelo projecto. Só foi preciso cortar - e muito - o açúcar nas bebidas. Parece que os nossos bisavós gostavam delas mesmo muito doces.
Estava um dia de calor e Alípio "apenas avistou na porta o ventre enorme do desembargador", precipitou-se para lhe tirar o chapéu das mãos, perguntar-lhe pelas senhoras e oferecer-lhe um copo de orchata, bebida que o dr. Vaz Correia tinha sempre fresca, "na saleta de dentro" nos meses de Verão. "Quer V. Ex.ª um copo de orchata?". E o desembargador: "- Pois venha de lá a orchata. Vai de refresco."
Mas o mundo das personagens de Eça de Queirós e do seu Conde de Abranhos já não existe e, com eles, a orchata parecia também ter desaparecido para sempre dos hábitos dos portugueses. Agora, cem anos depois, a bebida fria à base de leite de amêndoa voltou pela mão de Catarina Portas, a proprietária da loja A Vida Portuguesa, e do arquitecto João Regal, da mercearia gourmet DeliDelux, que a colocaram à venda nos três quiosques que recuperaram e estão a explorar no Largo de Camões, Praça das Flores e Jardim do Príncipe Real, em Lisboa.
Quando desafiou João para concorrerem juntos ao concurso lançado pela câmara municipal para a recuperação e exploração dos quiosques, Catarina sabia que tinham que ter uma ideia original. "Sempre gostei de quiosques e fazia-me impressão passar por eles e vê-los fechados sem nada a acontecer. Gosto de fazer este exercício de pegar numa coisa semiesquecida e perceber como é que se pode adaptar aos tempos de hoje de uma forma interessante, preservando as características originais de preferência", conta Catarina, num banco do jardim do Príncipe Real, ao lado de um dos novos/velhos quiosques.
Enjoadíssimos
Ao pesquisar no Arquivo Fotográfico Municipal e em livros antigos sobre a origem dos quiosques, Catarina percebeu que muitos deles vendiam refrescos. "Achei que era engraçado recuperá-los para a função que tinham na sua origem." Refrescos, portanto. Nova pesquisa, desta vez para tentar descobrir que tipo de bebidas eram apreciadas pelos lisboetas do final do século XIX. Encontrou várias referências, sobretudo em textos do crítico gastronómico José Quitério e, juntamente com o sócio, lançou-se na fase seguinte: testar os refrescos.
"O primeiro dia foi dramático. Ao final da tarde estávamos enjoadíssimos e pensávamos que aquilo não ia resultar. As bebidas tinham uma quantidade de açúcar inacreditável. Há 100 anos havia açúcar numa quantidade muito menor de produtos, mas mais concentrado". Assim não funcionava, pensaram.
Mas Catarina acreditava que a ideia inicial era boa. "Achei que de alguma forma isto já tinha dado a volta. As pessoas bebiam estes refrescos há 100 anos, depois puseram-se a beber refrigerantes, perceberam que estes tinham uma enorme colecção de 'Es' e agora estão a voltar a coisas com menos corantes, conservantes e aromatizantes." A solução tinha que ser reduzir a quantidade de açúcar.
Para além da orchata, queriam recuperar bebidas como a groselha, o capilé ou o leite perfumado. "Percebemos que os xaropes de groselha e capilé existentes em Portugal são muito desinteressantes porque são todos à base de aroma artificial." Decidiram que precisavam de ajuda e que a pessoa certa era Daniel Roldão, que, com a sua Fábrica do Rebuçado, fez renascer os rebuçados de ovo de Portalegre. E Roldão meteu mãos à obra para desenvolver novos xaropes, o de capilé a partir de folha de avenca e essência de flor de laranjeira, e o de groselha com groselhas holandesas para já (a partir de Julho já será possível usar as portuguesas), com muito menos açúcar do que as receitas centenárias.
Agora nos pequenos quiosques restaurados, e depois de um esforço considerável para conseguir aproveitar o diminuto espaço de arrumação, estão disponíveis as novas receitas de capilé, groselha, orchata, chá gelado, limonada chic (uma receita que junta ao sumo casca batida, para que aquele fique mais cremoso e menos amargo), mazagrã (bebida de café) e leite perfumado (leite fervido com canela, limão e açúcar e servido gelado). A cerveja não é permitida nos quiosques, mas há bebidas alcoólicas como a ginjinha, o Licor Beirão, a Amêndoa Amarga ou o vinho do Porto. No Inverno haverá vinho quente e outras bebidas para atrair os clientes ao quiosque mesmo com frio e chuva.
Sanduíches de torresmos
A comida segue a mesma lógica de fidelidade aos "sabores lisboetas": há sanduíches de bacalhau em meia desfeita, pasta de sardinha com pimentos assados, queijo de cabra e pasta de azeitona, presunto com azeite de amêndoa, torresmos com geleia de pimentas e queijo flamengo com marmelada. E, por fim, há doces tradicionais, das queijadas de Sintra aos queques de Tomar, passando pelos chocolates Arcádia, e até pelos "velhinhos" rebuçados do Dr. Bayard e as sombrinhas de chocolate Regina.
Não havia certamente sanduíches tão sofisticadas nos quiosques do século XIX. Mas estes eram importantíssimos pontos de encontro para os lisboetas. "O quiosque é o sucedâneo do café, da taberna, da leitaria, da papelaria; a loja em miniatura, próxima dos clientes, acessível, económica e altamente futurista. Acessível a todas as bolsas é sobretudo escolhida pelos operários, pela arraia miúda e pela pequena burguesia comerciante. Os estudantes e a elite intelectual também não desdenham este poiso para beber um copo, comprar o jornal ou um bilhete de lotaria e dar um dedo de conversa com os vizinhos", explica Claudie Bony em Uma História de Quiosques (ed. artemágica, 2004), um dos livros a que Catarina Portas recorreu na sua pesquisa.
É em Novembro de 1867 que surge nas Actas das Deliberações da Assembleia Municipal de Lisboa aquele que Bony identificou como o primeiro texto explícito sobre quiosques, no qual se propõe que "se officie ao governo de Sua Majestade, dizendo que a camara approva a collocação dos 'kioskos' propostos pelo sr. Dom Thomaz de Mello, como uma cousa útil, e, até certo ponto, como um meio de embellesamento".
Inspirados nos modelos parisienses, começam então a aparecer em Lisboa vários quiosques, uns para refrescos e comidas, outros para venda de jornais e colocação de anúncios. Ainda segundo Bony, no final do século XIX existiam já na capital 22 quiosques. Mas o pioneiro terá sido o que foi colocado no Rossio em 1869. Tinha sido baptizado como Elegante, "mas os operários e pequenos artesãos alcunharam-no de Bóia" e mais tarde ficou conhecido como o quiosque dos "libertários" por se ter tornado o ponto de encontro dos progressistas.
Nas velhas fotografias do arquivo municipal vêem-se homens de chapéu de coco à volta de um dos quiosques de refrescos do Largo de Camões (Catarina descobriu num alfarrabista um postal de 1905 que mostra o largo com nada menos do que cinco quiosques). Um pano às riscas, como o das barracas de praia, oferece uma zona abrigada do calor, e uma mulher de lenço a cobrir-lhe a cabeça está sentada nessa sombra. Outra imagem mostra um quiosque particularmente elegante, no jardim de São Pedro de Alcântara, com uma aba larga que dá sombra a uma pequena esplanada. (Também Catarina e João querem em breve ter esplanadas nos seus quiosques e esperam apenas a autorização da câmara).
Os cisnes da Estrela
Ao longo do tempo muitos foram desaparecendo, outros continuaram a ser utilizados, mas foram-se degradando. Um dos que deverão ir a concurso para serem reabilitados, e que Catarina considera dos mais bonitos, é o que está na praça em frente ao Jardim da Estrela, com os elegantíssimos cisnes a sustentar o telhado, mantendo uma dignidade intemporal, apesar do estado de degradação em que se encontra. Houve também quiosques que mudaram de sítio - é o caso do recém-inaugurado no Largo de Camões, que veio do Jardim das Amoreiras, e antes disso esteve no Porto de Lisboa e na Rua da Artilharia Um, prova de que a vontade de sobrevivência tem sido superior ao desgaste provocado pela passagem do tempo.
Agora, pelo menos os três Quiosque de Refresco (Catarina e João registaram esta marca e outra, Refresco de Quiosque, para o caso de virem a comercializar as bebidas fora dos quiosques) vão trabalhar a sério. Com 22 funcionários, a ideia é que estejam abertos todos os dias das 7h30 da manhã à meia-noite (o do Camões só fecha à uma da manhã), encerrando apenas três dias por ano. "São estabelecimentos democráticos, estão no meio da rua, são para toda a gente", diz Catarina. "Não faz sentido que estejam fechados, tal como não faz sentido que tenham preços elitistas" - um café aqui custa 60 cêntimos, e uma limonada, por exemplo, custa 1,20 euros.
A ligar os três está uma pequena carrinha que será identificada com a imagem de todo o projecto - os nomes das bebidas em faixas ondulantes, uma ideia para a qual o designer Ricardo Mealha se inspirou numa colecção de rótulos da antiga Fábrica Âncora - e que transportará várias vezes ao dia as bebidas e as sanduíches feitas na cozinha central da Rua do Poço dos Negros.
E assim, ao passarem pelo Camões, pelo Príncipe Real ou pela Praça das Flores, os lisboetas já podem recuar no tempo e, quem sabe, voltar a citar o desembargador Amado, a responder ao solícito Alípio: "Pois venha de lá a orchata. Vai de refresco".
Texto: Alexandra Prado Coelho.
in Jornal Público, 28 de Abril de 2009.
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E será que passados 3 anos deste post a coisa funcionou? Falo por mim apenas, mas que cá me apetecia provar uma orchata, oh, se apetece! :)
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